quinta-feira, 17 de novembro de 2016

As Penélopes Charmosas



   Criada no início dos anos 1970 para o seriado animado "Corrida Maluca", a corredora durona de modos delicados fez tamanho sucesso, que ganhou sua própria série, levando junto a Esquadrilha da Morte, em desenhos ambientados nos anos 1920/1930, como uma sátira adocicada aos filmes mudos. Naquela época, ainda havia muita gente que se lembrava dos anos loucos, por isso filmes retratando as duas décadas proliferaram como poucos.


    Com o tempo e o azedume, a personagem ganhou a pecha de machista, por sempre pedir para ser salva, ignorando os detratores que estar amarrada a um tronco a caminha de uma serra afiada, não é exactamente uma situação em que se possa dispensar ajuda. Ignoram também que ela geralmente conseguia se safar sozinha, às vezes até salvando os seus socorristas.


    Bem, o antigomobilista não se esqueceu dessa bravura e boa disposição. Penélope Charmosa passou a ser o apelido das mulheres que acompanhavam seus pares em encontros, passeios e ralis de carros antigos. Elas sabiam onde estavam se enfiando, afinal são carros com no mínimo trinta anos de uso, alguns com mais se setenta, ter de descer e ajudar a fazer um reparo pelo uso severo e prolongado não está fora do cronograma.


    Algumas, sem medo do preconceito que ronda quem vive a própria vida à sua maneira, com o tempo passaram a se vestir de rosa, algumas se caracterizando como Penélope, outras simplesmente usando roupas fofas e delicadas para encarnar a idéia da brincadeira, que muita gente leva à serio. Algumas já são celebridades em seus clubes, como estas moças aqui.


    Não demorou também para que essas Penélopes passassem a conduzir em vez de serem apenas conduzidas, preferencialmente conversíveis, porque afinal de contas, é este o espírito da personagem. Uma mulher livre, poderosa e que não deve satisfações a ninguém. Aos poucos, nos eventos mais tradicionais, tornaram-se parte das exposições, com trajes de época, fiéis ou estilizados, enriquecendo um tipo de evento que por si já é um entretenimento muito rico.


    As modelos mais curvilíneas, desdenhadas pela moda oficial, viram o nicho e hoje algumas se especializaram no tema. pois sim, quem vive à própria maneira não beneficia só a si, espalha o benefício ao seu redor e até gera empregos dignos. Há os que chamam garotas muito delicadas e de aspecto frágil de "Penélope Charmosa", com o intuito de constranger. Para quem se assume vintagista, queridas, é como chamar um corintiano de gambático e pensar que ofende. Dita Von Teese é provavelmente a mais famosa e glamorosa antigomobilista da actualidade, é uma Penélope assumida! Quer exemplo melhor?


    E vocês? Já soltaram a Penélope hoje?

Ver ensaios aqui, aqui, aqui e aqui.

sábado, 5 de novembro de 2016

A amnésia coletiva, a falta de compartilhamentos


Avenida 24 de Outubro, Setor Campinas, anos 1970.
Não é novo o bordão de que o brasileiro é um povo sem memória. Por exemplo, um artista pode fazer o maior sucesso em várias novelas consecutivas, se ele sair da mídia por um anos, corre o risco de nem ser reconhecido nas ruas. Lembra-se mais de Jodie Foster do que de Rosana Garcia, que foi uma menina prodígio de nossa pérfida televisão, afinal os americanos não deixam suas estrelas se apagarem com tanta facilidade. Antes de culpar a mídia por isso, vamos deixar alguns detalhes claros. Sim é um puxão de orelhas de quem está fazendo o serviço quase sozinho, com poucos e esparsos abnegados pelo país, que simplesmente não conseguem trabalhar realmente juntos.

Praça Joaquim Lúcio, Setor Campinas, Goiânia, anos 1930.

    Vocês já tentaram, sem apelar aos arquivos dos jornais digitais, encontrar uma photo de Agosto de 1952 de Araraquara? Uma imagem que seja de Rio Verde, Goiás, dos anos 1950? Seja qual for sua cidade, provavelmente terão dificuldades em encontrar registros de ano a ano, porque a maioria simplesmente não preserva, e quem os tem não costuma dividir. Vão tentar? Ok, esperarei um pouco. Enquanto isso verei um vídeo. Os que sabem que não vão conseguir muita coisa, por já terem tentado e chorado pela pobreza de nossa mentalidade, podem ficar por aqui e assistir também.



Marcia Hill at Fort Collins High School, c. 1930
    Conseguiram? Poucos, eu sei. E esses poucos conseguiram bem pouca coisa, mas conseguiram mais do que eu esperava. Por que não temos um acervo rico do interior do país? Mesmo as capitais de Estados do Norte e Nordeste não oferecem o que se poderia esperar. Aliás, é preciso digitar "Roraima anos 60" para conseguir ver alguma coisa entre os anos 1960 e 1980, genericamente distribuído. Mesmo do Setor Coimbra, aqui em Goiânia, por exemplo, eu encontrei quase que exclusivamente anúncios imobiliários, mesmo tentando refinar a pesquisa com "Setor Coimbra praça Walter Santos anos 60". Por outro lado, foi fácil encontrar imagens antigas de Fort Collins, uma cidade no Colorado que o resto do mundo praticamente desconhece... até agora. Na verdade até cidades castigadas do Nordeste brasileiro têm mais registros na internet do que as capitais do Centro-Oeste. Vergonhoso, eu sei, mas não é só para o poder público, como veremos mais adiante..

    E estou falando de uma região muito próxima a São Paulo, que é o Estado que mais guarda e compartilha seus registros de época! É possível ter, praticamente, imagens de cada dia da capital desde os anos 1950. Não é exagero, a riqueza e vastidão do acervo que encontrei, sem precisar recorrer aos arquivos de jornais, rivaliza com as maiores metrópoles do mundo! E tenham certezas de que há muito mais coisas guardadas em acervos pessoais, ainda não revelados. E mesmo essa proximidade não poupou Goiânia do vexame virtual. O goianiense tem seu acervo em casa, mas não o compartilha. Ver a história sem as amarras da mentalidade do autor de um livro didático, é de uma importância imensa, ajuda a formar pensamento realmente crítico sem lentes alheias, falarei a respeito logo a seguir, só um minuto.

Primeira Igreja Matriz de Campinas

    Certo, agora vem a bronca. O que diferencia os outros povos de nós neste quesito, basicamente, é que seus indivíduos se enxergam como parte de um povo. Eles não têm na maioria das vezes, vergonha em dizer que nasceram e foram criados em cidadelas minúsculas de um Estado pobre do rincão mais interiorano do país. Aqui nós temos dificuldades até para encontrar photos dos anos 1970 de instituições de capitais!
Colégio Santa Clara, Campinas, anos 1930.

    Desde que inventaram o hipertexto e a internet ficou rápida o bastante, americanos e europeus se apressaram em fazer e publicar registros de suas comunidades, na maioria das vezes com recortes de jornais locais praticamente desconhecidos, bem como com arquivos de família. A quantidade de blogs que surgiram do meio dos anos 1990 até meados dos anos 2000, com temática familiar e de registro local, é enorme! Escolas viram na rede um meio rápido e eficaz de se comunicar com ex-alunos e servidores aposentados, e quase sempre têm respostas rápidas deles e de suas famílias. Lá fora existe essa mentalidade de agregação do grupo, para isso apelam para as boas memórias, que são facilmente avivadas por photos, artigos e vídeos de época.

Copacabana Palace Hotel. Anos 1940.

    No Brasil eu não precisaria, mas vou esmiuçar para ver se vocês nos ajudam nesta tarefa ingrata. Praticamente nenhum colégio tem fotos relevantes na internet. Salvo os caros e tradicionais, como os Colégios Marista e Santa Clara, eles não querem nem saber das pestinhas que alvejaram precocemente seus cabelos há vinte ou trinta anos. Salvas as devidas proporções, absolutamente todos os professores do mundo, especialmente os que lidam com crianças maiores e adolescentes, têm ataques de nervos em algum momento de sua carreira acadêmica, mas mesmo assim eles fazem questão de ter e guardar registros dos capetas, digo, dos alunos que passaram por suas mãos. E eu me refiro com certa mágoa ao finado ETFG, que por egos inflados de ideólogos idiotas, tornou-se praticamente uma faculdade, mal tendo estrutura para ser uma escola técnica, e teve alguns cenários ORIGINAIS dos anos 1960 destruídos em nome dessa mentalidade estúpida.
Antiga Escola Técnica Federal de Goiás, anos 1980. A bela praça com chafariz e jardim foi transformada em estacionamento.

    Eu percebi que o Brasil foi sim um país promissor, que mesmo sob ditaduras ele respirou um pouco de ares de esperança e confiança no futuro. Houve época, por exemplo, que Goiânia tinha corridas de rua, no estilo dos grandes prêmios de Mônaco, com carros, motos e motonetas aliviados e envenenados rasgando as ruas ainda lisas e bem conservadas do centro da cidade. Praticamente todas as capitais já tiveram corridas públicas de rua, algumas mesmo quando já tinham autódromos para corridas da federação. Acontece que o automobilismo é o tipo de entretenimento que demanda um pouco de raciocínio e técnica, obriga as pessoas a ligarem causa e conseqüência, o que é particularmente perigoso para corruptos.

Rua do Rio de Janeiro, anos 1960

    Campinas, o bairro onde moro há mais de vinte anos, chegou a ter três salas de cinema. Quase nenhum dos moradores que chegaram nos últimos vinte anos sabe disso. Eles viraram lojas de tecidos e igrejas evangélicas. Quem quer ver um filme, hoje, está praticamente obrigado a entrar em shopping centers. Não é todo mundo que se sente à vontade nesses lugares, ao contrário do que a mídia alardeia. Nem todos gostam do ambiente artificial e isolado que eles oferecem, inclusive eu.

Dirce Maria Schroeder, Santa Catarina, 1940s

    Aliás, destruir a história é uma tradição muito arraigada, não só no poder público, mas também no seio da população em geral. Os países que têm grandes e ricos registros históricos na rede, são aqueles em que sua população se adiantou em disponibilizar photos de família, registros de eventos locais, de acontecimentos da comunidade e até lutos de suas cidades. Não foram os governos que se esforçaram, nos primórdios da internet, em disseminar a história de seus cidadãos, foram estes. Conhecendo um pouco da vida e dos hábitos de uma comunidade, se conhecem também o caráter e a mentalidade que ela alimenta.

    Não é só para historiadores que esses arquivos têm importância, para o público em geral é um modo de compreender que aquelas pessoas, naquela época e naquele contexto, não eram os monstros que muita gente faz parecer. Foram aquelas pessoas que fizeram, bem ou mal, o que temos disponível hoje. Não foi um Estado, não foi um herói, não foi uma celebridade. O que existe hoje, foi feito por pessoas comuns, cujos arquivos estão quase todos guardados em acervos pessoais, talvez sendo carcomidos por traças e corroídos por ambientes agressivos, como cômodos abandonados e repletos de umidade e odores fortes, ou ainda em oficinas esquecidas, mas ainda com muitos solventes exalando seus vapores e digerindo photos de época. Talvez estejam até bem perto de nossas casas, mas não nos damos conta, talvez nem os moradores dos locais tenham consciência ou mesmo consideração.

Rosana Garcia, anos 1970 e hoje.

    Qual a importância para o cidadão comum e anônimo de se compreender as pessoas da época? Em primeiro lugar essas pessoas são nossos ancestrais, mesmo que alguns não gostem dos seus. Acreditar na conversa simplista de gente revoltada com as tradições e a sociedade, nos faria acreditar que descendemos de criaturas puramente malignas, e que temos culpa pelo que elas fizeram ou teriam feito. Tens provas de que aquelas pessoas específicas foram monstros do espaço sideral? Não, não tens, então não acredite que tu és um monstro que deve ser culpado e escravizado pelos erros de uma época. Renegar o passado não o retifica.

Rua 20, Goiânia, anos 1930.

    Em segundo lugar, a compreensão sem os preconceitos de quem se alardeia isento deles, nos faz compreender as reais motivações que gente comum teve para cometer ou evitar os erros que ecoam até hoje. Eu compreendi que a maioria absoluta das pessoas erra tentando acertar. O passado bonito e promissor que nós vintagistas adoramos, simplesmente não teria existido se metade do que falam de mal fosse verdade. A Psique humana não permitiria isso! Vejam bem as photos dos anos 1940 e vão perceber uma espontaneidade, mesmo em alguns eventos solenes, que a maioria das selfies simplesmente não tem.
O Cine Ipanema, Rua Visconde de Pirajá, Praça Gal. Osório. 1934

    Em terceiro e último, mas não menos importante, porque a compreensão daquelas pessoas dilui o ódio. Passamos a desvincular a pessoa de sua obra, o cidadão de seu governo e os costumes de época das reais intenções. Sabem aquela conversa de eleger um inimigo e proteger quem lutou contra ele, mesmo que seja o pior canalha possível? Desaparece. Estudar imagens de época, ver expressões e analisa-las com carinho, nos tira erros de tradução interpretativa; vemos mais medo do que raiva no cenho franzido de uma mãe furiosa com seus rebentos, mais preocupação do que ódio na face enrugada de um senhor apreensivo, mais defesa do que ataque na reação de um público manipulado pelo real mal intencionado. Passamos a ver gente, em vez de avatares anônimos da história.

    O bônus para quem tem acesso e leva à sério o estudo de um lugar, é muito grande! Quem se debruça sobre os arredores do Lago das Rosas, por exemplo, procura conhecer os moradores antigos, ver registros, filmes de época, músicas que faziam sucesso então, a alimentação, os productos e bens de consumo mais comuns, os carros que circulavam na área e as principais notícias do período, pode sem medo dizer que viveu a época, mesmo sem ter vivido na época. Porque simplesmente experimentou o suficiente dela para falar como se fosse um antigo morador de lá.

Goiânia, Estação Ferroviária, 1957

    Eu ainda me lembro quando havia uma linha de trem que cortava Goiânia ao meio, ela passava justo onde hoje existe um condomínio residencial, chegava à estação ferroviária e saía pelos extremos da cidade. De vez em quando eu via, quando ia para o centro da cidade, as locomotivas com sons de FNM puxando longas composições, passando por viadutos sobre algumas ruas e fechando as que estavam no mesmo nível. Mas tudo isso são memórias minhas e, como já reclamei, tem quase nada de registros para eu mostrar; pelo menos por enquanto.